18.5.04

O Anjo Malaquias

O Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse exagerado olhar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, só por esporte.

Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se Malaquias – tão piquinininho e rechonchudo, pelado, a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância…

O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre. Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito… saiu voando janela em fora…

Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus lhe vale!

Que o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.

E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrecochar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!

E a mundana que pinta seu rosto de ídolo… E o empregadinho em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos de afogado… E o orador que pára no meio de uma frase… E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso… Todos escutam, no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!

E quantas vezes um de nós, ao levar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece… ˜ O Anjo! O Anjo Malaquias! ˜ … E então, pra disfarçar, a gente faz literatura… e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu… ou que um pneu estourou, longe… na estrela Aldebaran…

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