O Ogre rilhava os dentes agudos e lambia os beiços grossos, com esse exagerado olhar de ferocidade que os monstros gostam de aparentar, só por esporte.
Diante dele, sobre a mesa posta, o Inocentinho balava, imbele. Chamava-se Malaquias – tão piquinininho e rechonchudo, pelado, a barriguinha pra baixo, na tocante posição de certos retratos da primeira infância
O Ogre atou o guardanapo ao pescoço. Já ia o miserável devorar o Inocentinho, quando Nossa Senhora interferiu com um milagre. Malaquias criou asas e saiu voando, voando, pelo ar atônito
saiu voando janela em fora
Dada, porém, a urgência da operação, as asinhas brotaram-lhe apressadamente na bunda, em vez de ser um pouco mais acima, atrás dos ombros. Pois quem nasceu para mártir, nem mesmo a Mãe de Deus lhe vale!
Que o digam as nuvens, esses lerdos e desmesurados cágados das alturas, quando, pela noite morta, o Inocentinho passa por entre elas, voando em esquadro, o pobre, de cabeça pra baixo.
E o homem que, no dia do ordenado, está jogando os sapatos dos filhos, o vestido da mulher e a conta do vendeiro, esse ouve, no entrecochar das fichas, o desatado pranto do Anjo Malaquias!
E a mundana que pinta seu rosto de ídolo
E o empregadinho em falta que sente as palavras de emergência fugirem-lhe como cabelos de afogado
E o orador que pára no meio de uma frase
E o tenor que dá, de súbito, uma nota em falso
Todos escutam, no seu imenso desamparo, o choro agudo do Anjo Malaquias!
E quantas vezes um de nós, ao levar o copo ao lábio, interrompe o gesto e empalidece
O Anjo! O Anjo Malaquias!
E então, pra disfarçar, a gente faz literatura
e diz aos amigos que foi apenas uma folha morta que se desprendeu
ou que um pneu estourou, longe
na estrela Aldebaran
Nenhum comentário:
Postar um comentário